Diário de Viagem de Thaumor Barba Prateada | Conto de Fantasia Medieval

Escrito por: Rodolfo Sinopoli

Este é o relato de uma aventura de Fantasia Medieval, sistema D&D v3.5 ambientada em Forgotten Realms, como vista aos olhos do anão Thaumor BarbaPrateada. Um conto de amizade, vingança, ação e exploração.

Indicado para 16 anos ou mais.

Prefácio

Se este tomo que você tem em mãos estiver completo, é porque o Culto de Abbathor foi finalmente extinto. Se ele termina abruptamente em algum ponto da jornada, entregue-o a um servo do Guerreiro, Clangeddin, ou do Pai, Moradin, para que a luta contra o mal e a mentira continue.

A história deste humilde clérigo anão começa em Velen, pois recebi correspondência de um primo que suspeitava da presença de meus inimigos neste local. Tenho motivos suficientes para acreditar, afinal, meu primo havia sido morto quando cheguei a nosso ponto de encontro.

Consegui me evadir a tempo de escapar de seus assassinos, mas não quis me afastar das possíveis atividades malignas. Por caprichos do destino, prestei alguns serviços à nobreza local e acabei entrando para a milícia da cidade, embora não tenha notado quaisquer operações suspeitas nos últimos dias.

Que os bons deuses de nosso panteão o tenham, Thamûk PresaDeFerro…

Primeiro dia – O Banquete

Velen é um lugar aprazível e, embora seja um local de cidadãos menos honestos do que receptivos, a rotina da milícia é monótona e suficientemente rentável. Apreendendo ladrões de frango e pequenos charlatões, depois colocando-os em seu devido lugar, foi a forma como eu subi rapidamente de posto nas últimas semanas.

O cargo de sargento da milícia, apesar de muito abaixo dos oficiais militares, me levou a participar do banquete em homenagem a um ancião chamado Athas. Ele talvez não fosse mais velho do que eu, mas parecia bem velho para um humano, e era reverenciado por todos os presentes, exceto um.

Enquanto nobres poderosos, soldados de alta patente, comerciantes proeminentes e até mesmo o prefeito Whetimn o bajulavam, meu colega e também sargento da milícia Eygolan o observava atenta e discretamente. Mais tarde, na minha décima quarta caneca de cerveja, lembro-me do rapaz comentar:

“– Esse tal Athas parece incomodado…”

– Deixe de bobagem, jovem paladino! – Respondi, entregando-lhe um caneco bem cheio, que ele polidamente recusou.

Melhor para mim, que o entornei até enxugar o último gole!

Fui um dos últimos a ir embora da festa. Como não vi Athas deixar o grande salão da prefeitura, um prédio de três andares que também era a residência do prefeito, deduzi que ele seria hóspede de Whetimn. A propósito, os bardos cantavam sobre os feitos heroicos do velho visitante, que supostamente expulsara, sozinho, um navio pirata que teria abordado os pobres tripulantes de uma embarcação mercante.

Segundo o discurso de Whetimn, Velen agora tomaria uma postura verdadeiramente ofensiva contra as ameaças marítimas, sobretudo as incursões dos piratas das Ilhas Nelanther.

Segundo dia – Forasteiros

O amanhecer chegou rápido, acompanhado de uma boa dor-de-cabeça. Velen, contudo, estava em polvorosa. Pelo que se dizia, ou melhor, o pouco que consegui ouvir em meio às informações desencontradas das primeiras horas da manhã, quatro estrangeiros da longínqua região de Damara, milhares de milhas a noroeste, haviam desembarcado de um navio-correio.

Segundo os rumores, um anão mascarado se afastara do grupo, retirando-se pelos portões da cidade em direção à estrada, e os outros três, com suas roupas verdes e douradas, tinham se hospedado na estalagem BlackThorne, de onde não mais saíram.

Depois do almoço, o capitão Goghar, líder da milícia, convocou os sargentos para uma comissão na prefeitura que teoricamente deliberaria o destino dos forasteiros.

– Eu mesmo sou um estrangeiro! – Falei para ele, bem como para meus cinco colegas sargentos: os humanos Riffin, Walhelm, Hearda e Eygolan, e o halfling Gilip. – Nunca causei problemas, e esta cidade é sempre cheia de viajantes, que geram serviços e trazem dinheiro! Por que expulsar esses indivíduos que tanto viajaram para chegar até aqui?

Surpreendi-me com um dos conselheiros pronunciando-se com palavras semelhantes, porém o sujeito era bastante conciso, articulado e convincente. Próximo a ele estava Athas, com as mesmas feições inquietas e apreensivas da noite passada.

De qualquer forma, muitos ali desejavam a expulsão dos inesperados visitantes, mas foram vencidos graças ao voto popular, uma vez que dentre os poderosos a decisão ficou empatada. Decidiu-se então que seria enviado um aviso a eles, para que se apresentassem formalmente diante do prefeito, mostrando que vinham em missão de paz. Pelos costumes diplomáticos, eles tinham o prazo de um dia para fazê-lo, prazo este que venceria ao amanhecer do dia seguinte. Ainda assim, Goghar ordenou que montássemos guarda ao redor da estalagem e, para minha sorte, peguei o primeiro turno de vigília, sendo liberado para voltar a meus aposentos na estalagem Morgan no começo da madrugada.

Já estava para anoitecer quando a reunião terminou. Passei pela cozinha da prefeitura e, graças aos deuses, havia sobrado cerveja do dia anterior.

Enquanto estava de serviço, vi os três novos hóspedes receberem o pergaminho do oficial da guarda responsável pela entrega da mensagem. O líder do grupo aparentava ser um guerreiro qualificado, com uma espada na cintura e a cabeça raspada. Um de seus companheiros tinha um mangual e o outro estava desarmado. Todos portavam símbolos religiosos, mas a ressaca não me deixa lembrar qual era a divindade.

Talvez amanhã eu me recorde…

Terceiro dia – Alvoroço

Chego a pensar em ir embora daqui.

Outra vez me apresento cedo, e outra vez encontro o capitão desesperado. Ao que parecia, os forasteiros haviam escapado aos olhos de meus companheiros do segundo turno e cruzado a cidade. Saíram a pé pelo portão antes de o sol nascer, mas os guardiões nada puderam fazer, dado que o prazo para apresentação ainda não havia se esgotado.

Assim, todos os integrantes da milícia foram separados em grupos e enviados para além dos muros da cidade. Por sorte, acabei no mesmo destacamento que Eygolan.

Ele parece ser um bom homem e alguém justo.

O fato, contudo, é que fomos incumbidos de rumar para noroeste e esquadrinhar cada centímetro quadrado da área rural de Velen até o Forte Tordraken. Pelo menos eu estaria afastado da cidade por uns dias. Mas também significava que eu estaria longe dos cultistas de Abbathor.

Forneceram-me um pônei, peguei meus pertences e partimos pela estrada.

Sétimo dia – A Torre

Apesar de ser território rural, a estrada era bem conservada e cruzamos com muitas pessoas que passavam em ambos os sentidos. Aparentemente haveria uma festa no Forte Tordraken. Um baile de máscaras, ou algo assim, e os preparativos estavam sendo realizados. Pessoas buscavam provisões e tudo o que fosse necessário para a confraternização e hospedagem dos convidados.

O forte em si era uma construção bastante antiga, possivelmente anterior ao que conhecemos hoje como reino de Tethyr. Uma massa sólida de rocha sobre rocha, apoiada num planalto alto e imponente sobre a costa, com vista para o grande trecho de mar que abraça o promontório.

Com todos os aposentos sendo utilizados para os preparativos, mandaram-nos para o alto de uma torre com vista para o oeste. Chegamos à noite, ventava bastante, ainda mais naquele aposento descoberto na muralha. Me dispus a fazer a primeira vigília e providenciei um caixote para enxergar sobre a amurada construída por humanos e para humanos. Humpf!

Quando meus amigos já se preparavam para iniciar o merecido repouso após a longa viagem de quatro dias, avistei chamas e movimentos de batalha metros abaixo, numa pequena vila de pescadores que provia grande parte da alimentação do forte ao longo do ano, como deduzimos mais tarde.

Abandonamos nosso ponto de repouso e descemos os degraus escarpados da árdua trilha entre o castelo e a aldeia a tempo de ver criaturas bípedes reptilianas ateando fogo às cabanas e enfrentando os pobres aldeões que lutavam para escapar do massacre.

Ao longe, contudo, em meio à confusão, vislumbramos ninguém menos que quatro guerreiros com vestes douradas e verdes. Os malfadados e malquistos estrangeiros!

A princípio corremos para contê-los, e no caminho percebemos que eles confrontavam os homens-lagarto. Lutamos bravamente ao lado deles, vencemos os invasores e tentamos contato. Ou melhor, Eygolan tentou, com aquele que parecia um clérigo. Ilmater era seu deus, inclusive este se trata de uma divindade representante do bem.

“– Damarano! Quero falar com você!” – Bradou meu amigo paladino, o bom Eygolan.

O homem tentou ignorá-lo, e quase ficou na pior, pois lançou uma magia para paralisar seu interlocutor. Eygolan obviamente não gostou nada disso, e seus nervos ficaram à flor da pele. Ele tentou agarrar o forasteiro, que se esquivou com habilidade e aplicou-lhe um golpe de mangual. O paladino, fora de si, revidou com fúria e a lâmina de sua espada mordeu fundo na carne do oponente, que se contentou em se afastar, ao ser chamado pelo líder, aquele de cabeça raspada.

Neste momento, eu defendia um integrante de nosso grupo, o corajoso Traven, filho de Braven, ou algo que o valha. Ele estava cercado por homens-lagarto e fatalmente seria morto e devorado. Protegi-o como pude até o último réptil bípede maligno cair a meus pés.

A essaaltura outro, que também viera conosco, um halfing chamado Luck FullMoon, que adentrara como um raio na batalha derrubando dois inimigos, arrastava-se pela subida após ser atingido pela garra de seu terceiro adversário. O rastro de sangue era visível atrás dele, mas eu acho que ficará bem.

Os aldeões retornavam e a guarnição do castelo chegava, então deixei o rapaz Traven aos cuidados deles.

Agora Eygolan e eu pretendemos seguir a trilha costeira para leste, seguindo os passos dos damaranos que adentraram a mata.

Oitavo dia – O Navio

O relato anterior foi terminado de forma abrupta pois estava eu sentado sobre um banco, dentro de uma das cabanas da vila de pescadores, tomando uma cerveja que encontrei por ali, quando o Eygolan adentrou a tenda bruscamente, dizendo:

“– Thaumor! O que acha de seguir os forasteiros agora?”

– Murann fica a uns dois dias daqui e é a primeira cidade civilizada a leste. Não precisamos ter pressa. – Respondi da maneira mais polida que minha pouca simpatia permite.

“– Tens razão! Três dos quatro forasteiros passaram a primeira noite numa das melhores estalagens de Velen. Pode ser que queiram algum conforto e, de qualquer maneira, nós precisamos descansar.”

A cerveja era levemente salgada, o que me levou a concluir que havia sido elaborada com água do mar. Embora não fosse a pior que já tomara em minha vida, a veemência do paladino fez com que eu me levantasse e o seguisse. Infelizmente o morador da cabana perdera também a caneca, afinal, tive que terminar os últimos goles no caminho.

Vi que o bravo rapaz Fraven havia sobrevivido aos ferimentos, cuidado por guardas de Tordraken, então meus esforços para protegê-lo valeram a pena. Amanheceu e o capitão daqueles soldados de guarnição recomendou que repousássemos, já que o caminho era pedregoso e difícil mata adentro.

A volta a Tordraken pela trilha que subia a colina foi acompanhada por um pequenino artista. Tratava-se de um gnomo, que carregava um banjo adequado a sua estatura e fazia perguntas a respeito do combate na praia. Seu nome era Kaduim, e ele foi tão agradável e sutil que Eygolan acabou o convidando para narrar nossas próximas aventuras.

A subida, entretanto, terminou de forma triste. O pobre e corajoso Luck FullMoon não resistiu às lesões sofridas e agonizando em meio aos degraus superiores da trilha, a poucas dezenas de metros da base da fortaleza, pereceu.

Enterrei-o ao lado da passagem e prossegui, alcançando meus companheiros no salão do castelo, onde fui recebido com “vivas”, saudações e uma caneca de cerveja. Tomei-a de uma vez, já que seu tamanho era o padrão dos humanos, o que para mim não passava de um gole, e apreciei o gnomo entoar uma heroica canção que comprovava que ele tinha assistido a boa parte da luta.

Craven foi descrito como “saco-de-pancadas” e eu como um mendigo furioso, mas me apeteceram os versos em que os forasteiros haviam fugido e que meu grupo foi o último a deixar o campo de batalha.

Após a música, Eygolan deixou o salão com toda aquela pompa de herói, subindo as escadas com a capa esvoaçante. Alguns dos presentes talvez não soubessem que tais escadas o levariam à torre onde teríamos passado a noite, e que ele descansaria agora sob o sol, pois não havia cobertura.

Após algumas horas do merecido repouso, fui chamado pelo paladino para finalmente seguir os damaranos. O aguerrido Praven parecia revigorado, e se dispôs a participar, assim como o carismático Kaduim nos acompanharia, já que sua primeira canção sobre nós havia feito sucesso e lhe rendido algumas moedas.

Decidimos seguir antes do pôr-do-sol, já que uma maré alta poderia apagar os rastros, embora soubéssemos que não seria impossível encontrar os sinais da passagem de três humanos e um anão. Logo passávamos pela vila de pescadores e adentrávamos a mata costeira por onde os forasteiros tinham ido há algumas horas.

Nesta tarefa, Graven se mostrou absolutamente competente. Ele sabia o que procurar e descobriu, nos primeiros metros, que nossas presas tinham desviado o trajeto. Ele procurava por galhos quebrados, folhas pisadas e outros indícios mais sutis, os quais já não me recordo.

A noite caiu e o patrulheiro seguia convicto, até que fomos surpreendidos. Três criaturas nos cercaram em um ponto desagradável de se combater, porque à nossa esquerda a mata era densa e à direita havia uma escarpa íngreme, que resultava numa queda de uns vinte ou trinta metros, conforme o trecho.

Os animais eram quadrúpedes ágeis, como leopardos, e tinham bocarras escancaradas com a musculatura mandibular saliente e exposta, algo repugnante de se ver.

Mas meu companheiro estava à frente e agachado, procurando vestígios dos damaranos. Ele tentou nos avisar do perigo com antecedência, mas não entendi o recado gestual. Humpf!

De qualquer forma, dois o atacaram, enquanto o último grudou no ombro de nosso paladino Eygolan. Enquanto ele e o gnomo Kaduim se desvencilhavam do monstro, puxei Kraven, passando por ele, e girei o machado com força para derrubar um dos atacantes escarpa abaixo. O outro rugiu com a boca cheia de dentes arreganhados e afiados.

A saliva escorria pelas laterais da mandíbula, e o hálito de carniça se espalhou pelo ar. Ataquei uma vez mais, e Kraven trocou de lugar comigo de volta para dar o golpe final. Atrás de nós, Kaduim e Eygolan tinham problemas, mas a trilha era estreita e não conseguíamos passar.

O monstro ainda não tinha soltado o ombro de Eygolan, do qual sangue escorria, apesar da armadura ter atenuado o prejuízo. Kaduim armou a besta e tentou um tiro perigoso. De onde estava ouvi zunido do virote, que “lambeu” o ouvido do paladino e atingiu em cheio a criatura, que tombou aos pés deles.

Com uma faca serrilhada, Zraven filho de Sraven retirou a pele e o couro de uma das feras e passou a usar como capa. O cheiro era ainda mais repugnante, mas não podíamos negar que o guerreiro ostentava um aspecto intimidador, caminhando com suas duas espadas e envergando tal carcaça.

Optamos por não acampar naquela trilha perigosa e prosseguimos até que o caminho se tornava descendente, já de madrugada retornando à praia, num trecho em que ao norte estava o mar e ao sul um paredão rochoso com trepadeiras. À nossa frente, havia um grande navio de guerra naufragado há décadas, encalhado na areia.

Braven e eu analisávamos a escarpa pedregosa enquanto Eygolan e Kaduim resolveram investigar o interior do navio. Lá de fora, ouvimos um estrondo seguido de um rugido, ao que prontamente corremos para acudir nossos companheiros de jornada.

Passando por um buraco no casco, encontramos Eygolan sendo espancado por uma criatura ainda mais estranha do que as que enfrentamos mais cedo. Era um misto de um robusto tigre com cauda píscea, e atacava com suas garras e uma potente mordida.

Kaduim demonstrou ter uma arma interessante. Era uma varinha mágica que tornava as pessoas grandes. Ele se escondeu atrás de alguns destroços e lançou tal feitiço para que Eygolan pudesse combater o inimigo de igual para igual.

Porém outro monstro semelhante surgiu rastejando do fundo do grande navio, um trecho alagado na região da popa, e atacou nosso paladino, que tombou antes que meus curtos passos pudessem alcançá-lo. Usei os poderes a mim concedidos pelo patrono Clangeddin e curei meu companheiro, mas também fui atacado.

Inesperadamente, tornei-me um anão gigante, devido à varinha do amigo gnomo, e pude combatê-los, evidentemente desajeitado, mas com certeza mais forte, afinal, meu machado tinha agora o dobro do tamanho! Então, para desespero de nosso grupo, um estrondo ainda mais alto estremeceu toda a estrutura úmida e apodrecida do navio, e um tigre-sereia maior que os outros e muito mais forte veio em nossa direção.

Tudo parecia estar perdido, e um novo estampido fez o casco tremer uma vez mais. Protegi-me da mordida feroz de meu oponente e olhei na direção do ruído por cima da borda do escudo, para ver que não era outra fera, mas sim aqueles forasteiros que tinham vindo retribuir o favor que lhes fizemos ao salvá-los dos homens-lagarto.

Os damaranos fizeram um buraco no casco do navio, engajaram-se e lutaram com ferocidade e, combinando esforços, conseguimos derrotar os monstros anfíbios. Então, da mesma forma como entraram, deram-nos as costas e deixaram o local a passos decididos. Um instante depois, ouvimos o ruído de suas botas contra o assoalho do navio que rangia acima de nós.

Enquanto estou aqui, sentado sobre este velho caixote e escrevendo estas linhas, Eygolan acaba de recobrar os sentidos, Draven nos comunica ter sentido odores de putrefação advindos dos damaranos e Kaduim faz seus acordes compondo os versos deste capítulo.

Nono dia – Torcicolo

Dormir de armadura é uma merda!

Se você, leitor, nunca teve esta experiência, lhe aconselho, pelo amor dos deuses, a jamais fazer isso!

Mas não tivemos escolha. Devido ao duro combate de ontem, quase dormi em cima deste diário. Se estas letras estiverem borradas, é porque minha pena caiu na lama do convés do navio e ainda está úmida. Ainda bem que os papéis continuaram sobre meu colo enquanto eu tombava e me recostava, escorando-me ao caixote.

Enfim, o fato é que acordamos com a luz do sol invadindo o interior do navio naufragado através de uma fresta entre as velhas tábuas. Eygolan, como eu, tinha o aspecto péssimo, e Kaduim trouxe em acordes a novidade desta manhã:

“As notícias, meus amigos companheiros

Podem ser tristes para vocês, guerreiros

Mas perdemos aquele bravo camarada

Pois acordei e não vi o saco de pancada”

Demorei alguns instantes até entender que ele falava de Draven, filho de Kraven, o patrulheiro batedor de nosso grupo. Até alguns dias atrás isto pouco me incomodaria, contudo o rapaz havia se mostrado um exímio rastreador, e certamente nos fará falta.

De qualquer forma, tínhamos uma missão, e deveríamos cumpri-la, com ou sem ele. Tratava-se de encontrar e levar de volta a Velen aqueles quatro forasteiros – ou pelo menos três deles, já que o anão não havia adentrado os limites da muralha – e, principalmente, Athas, aquele velho que se tornara um herói nacional e ganhara o cargo de conselheiro da cidade após expulsar um navio fantasma nos mares da Costa da Espada (segundo as histórias relatadas por um bando de marujos bêbados e apavorados, pela maneira como contaram o ocorrido).

Enfim, observamos ao redor, mas a subida da maré possivelmente apagou  os rastros do grupo de estrangeiros. Não sabíamos se eles tinham escalado o costão rochoso cheio de musgo e ido pela mata acima ou simplesmente se deslocado ao longo da praia, o que era mais óbvio, mas tínhamos que confirmar.

O pequenino Kaduim tinha, como sempre, uma carta na manga. Por algum motivo arcano que não compreendo totalmente, ele dizia que poderia conversar com animais. Eygolan jogou um arpéu até o ponto mais alto do barco tombado e subimos por sua lateral. Dali pegamos impulso para chegar até o topo do paredão, uns três ou quatro metros acima da faixa de areia. Analisávamos se haveria uma trilha ou coisa parecida e, quando me dei conta, lá estava o gnomo brincando com um pequeno roedor com cara de canguru.

Eles faziam aqueles sons esquisitos dos ratos, colocando os dentes para a frente e emitindo um guincho agudo. Após dar um pouco da ração de viagem em farelo, o baixinho retornou dizendo que o “rato-canguru” não viu a passagem de quaisquer humanos por ali nos últimos dias.

Não tome estas palavras como se eu tivesse acreditado nele.

E nem como se eu fosse muito mais alto.

De onde estávamos dava para ver a faixa de areia da costa ao longe, contornando o restante do trecho sul da grande península. Percorreríamos aquele trajeto até o continente atrás de nossos objetivos, se fosse necessário. Sabíamos que não estávamos longe de Murann, já que tínhamos trazido cartas geográficas detalhadas da região, assim como alguns mapas gerais da Costa da Espada.

Bem à frente, talvez a algumas milhas, como uma joia incrustada numa estrada importante chamada Caminho do Comércio, se situaria a vila de Pedramusgo, e era ali que passaríamos a noite seguinte, já que nesta próxima teríamos que acampar ao relento.

Antes disso, entretanto, percebemos que nossos olhos haviam nos pregado uma peça. A baía ao sul da península parecia manter uma faixa arenosa contínua, mas na verdade havia uma reentrância, oculta devido ao ângulo de visão do ponto onde estávamos, e neste trecho a formação rochosa avançava de encontro ao mar, deixando apenas rochas molhadas para pularmos. Já era meio da tarde, e decidimos escalar a escarpa à nossa esquerda e seguir mata adentro para o leste.

Quando anoiteceu – e estávamos a um punhado de milhas de Murann, na costa norte – encontramos uma trilha estreita que parecia seguir o mesmo curso, e decidimos por ela continuar a contornar a praia em direção à cidadezinha. Peguei o primeiro turno de guarda em uma clareira, e nada aconteceu naquelas horas, assim como nas vigílias subsequentes de Eygolan e Kaduim.

Décimo dia – Caças e Caçadores

Na manhã seguinte, comemos o restante de nossa ração de viagem e realizei minhas orações, onde me desculpei com O Guerreiro Clangeddin por não estar no encalço dos servos de Abbathor. Eygolan rezava pela bênção de Helm, o deus da justiça dos humanos, e Kaduim dedilhava em seu instrumento de cordas produzindo acordes que emanavam serenidade. Combinados ao agradável cheiro do orvalho da manhã, podíamos nos concentrar absolutamente reclusos em nossas preces. Contudo, em contraste com tal atmosfera, preparei minha seleção de magias para batalhas que poderiam estar por vir, e somente ao fim da tarde veio a certeza de que tinha razão.

Ouvimos gritos e corremos pela trilha, chegando a um barranco no fundo do qual estavam nada menos que nossos cinco alvos. No entanto, ao contrário do que imagináramos, os quatro estrangeiros cercavam o conselheiro Athas, encurralado de costas para um paredão. Um curso de água corrente com não mais que dois palmos de altura cruzava a área entre Athas e seus caçadores, naquela região úmida cercada por um perímetro composto de quatro barrancos. À direita e à esquerda do velhote haviam passagens estreitas que eram, respectivamente, a entrada e a saída do riacho.

O velho homem gritava, e os damaranos respondiam bruscamente, mas numa linguagem para nós impossível de se compreender, embora fosse óbvio que estava ocorrendo uma discussão.

“– Mantenham-se fora disso!” – Avisou-me o anão do grupo, no idioma de nossa raça. Eu não sabia, mas Kaduim o entendia muito bem.

Respondi-lhe que tínhamos uma missão. Ocultei o fato de que eles eram parte desta missão, mas acho que ele sabe disso. E ele avançou, junto a seus colegas.

Pelo jeito, Athas também era a missão dele.

Confio no julgamento de Eygolan. Como um paladino, basta olhar para alguém que sabe se há maldade na aura da pessoa. Ele costuma acertar, e murmurou enquanto também avançávamos:

“– Não vejo grandes máculas nos corações dos estrangeiros. Já quanto a Athas…”

Foi o suficiente para que eu empunhasse o meu machado e desatasse a correr para a batalha, ao mesmo tempo conjurando minhas magias de proteção e força – as dádivas de meu patrono Clangeddin.

Mas, infelizmente, minhas pernas são mais curtas que as dos humanos. Humpf!

Quando cheguei ao regato, Athas já havia sacado algo negro e luminoso de sua bolsa e invocado três Demônios das Correntes, advindos diretamente do abismo. Nosso paladino Eygolan e o paladino estrangeiro se digladiavam contra uma daquelas criaturas abissais envoltas em elos e aros metálicos. Kaduim lançou uma magia para que uma delas escorregasse enquanto atirava com sua besta. O clérigo e o mago damaranos lançavam feitiços de ataque, mas o anão deles fora pego num encantamento, abandonando seu machado e saindo por um dos lados, acompanhando o curso da água.

Quando puxei minhas calças para cima e dei um grande salto sobre o riacho, a corrente de um dos demônios iria me acertar, mas meti o escudo na cara dele e passei ileso, chegando a dois passos de Athas. O velho berrava em desespero:

“– Milicianos, contenham-nos! Vocês devem me levar em segurança de volta para Velen, pois sou um conselheiro, e vou…”

O interrompi com uma magia de silêncio, assim como abafei todo o som numa área de seis metros de raio centrada em mim, por alguns segundos. Se alguém perguntar, fiz isso para que ele parasse de invocar criaturas bestiais, mas tenho para mim que, na verdade, queria cessar com suas bravatas!

Eu olhava fundo em seus olhos, pronto para pegá-lo, mas não saí do lugar.

Pois seja lá o que for que o bastardo tivesse na bolsa, a traquitana luminosa negra tinha acabado de fazer brotarem raízes do chão, que prendiam nossos pés. O outro anão retornara e ficara preso, assim como a maioria de nós e um dos demônios.

Athas, então, saiu correndo como se fosse um jovem de metade da sua idade, seguindo a pequena vazão de água enquanto os estrangeiros tentavam, aos tropeços, segui-lo. Estava claro que não conseguiriam, um dos inimigos ainda tomou a espada das mãos do paladino damarano, que teve que se virar pelo restante do combate com uma adaga.

Mas é evidente que isso seria uma gentileza de minha parte.

Pois eles não ficaram até o final da luta, livrando-se atabalhoadamente das raízes constritoras e deixando-nos contra os demônios e suas malditas correntes de aço.

Acho que eles não pegaram Athas, pois o velhote tinha o pique de um menino e ganhara uma vantagem preciosa nos segundos em que seus perseguidores tropeçavam e eram enredados pelas raízes mágicas.

Nos saímos bem, e sei que Kaduim fará novos versos de mais uma ocasião em que vencemos o mal. E na qual não fugimos dele, como fizeram os estrangeiros. Mas perdemos um tempão, e já anoitecia quando os seguimos. Sem nosso caçador, era impossível traçar o mesmo caminho que eles, e lá pelas dez horas da noite avistamos as muralhas da vila de Pedramusgo.

A algumas milhas de lá, fomos interpelados por um senhor de feições calishitas, com barba cerrada, pele morena, olhos profundos e castanhos e as marcas dos anos de sol que castigaram sua face encimada por um vasto cabelo escuro, parcialmente oculto pelo capuz do manto, assim como ocorria à espada curva que reparei em sua cintura.

E ele sabia com quem falava, inesperadamente dando detalhes da nossa viagem de Velen até aqui.

“– É simples!” – Disse em seu sotaque carregado, apontando para a muralha de rocha do povoado. – “Lá dentro tem algo que eu quero, e sei de algo que vocês querem, então quero fazer uma troca, e acho que vocês também vão querer!”

Essencialmente, aquele homem pedia que lhe entregássemos uma mulher de sua terra que vivia em Pedramusgo, dias de viagem ao norte de Calimsham. Pelo jeito, nem aquele guerreiro nem outros calishitas eram bem-vindos naquela aldeia que, assim como Velen, pertenciam ao reino de Tethyr.

“– …Ela traiu nosso povo! Há quatro anos entregou uma rota secreta sob as muralhas para um exército de mercenários, e agora queremos levá-la à justiça de Calimsham!”

O homem parecia determinado, mas nosso paladino Eygolan não se deixaria levar por aquela conversa:

“– Eu não irei sequestrar alguém sob a proteção local, sem um motivo incontestável!”

O homem então lhe entregou um documento que dizia provar a veracidade da alegação, mas estava no idioma calishita e dele não entendemos nada.

“– Compreendo, vocês querem uma recompensa, não é mesmo!? Pois bem, eu sei para onde Athas está indo. Posso lhes fornecer cavalos quando levarem a traidora até Zazesspur, e lá darei a resposta que vocês precisam, assim chegarão muito antes e confrontarão o velho de frente, parando de tropeçar em seus próprios erros.”

A oferta parecia tentadora, mas eu não deixei transparecer. Tentei outra abordagem, já que meus amigos às vezes dizem que pareço um andarilho bêbado e malcuidado:

– Podemos fazer o que quisermos com ela, inclusive tortura?

Pelo olhar fuzilante de Eygolan, tive certeza de que ele me daria uma cotovelada, mas Kaduim entendeu a ideia de pronto, que consistia, basicamente, em testar a moral do calishita perante este assunto. Mas ele, que se apresentou como Omar Abbul Safah, se mostrou frio:

“– Façam o que quiserem com ela, contanto que chegue viva e em condições de receber a justiça de Calimsham.”

Deu-nos em seguida uma breve descrição da suposta criminosa e disse que ela se chamava Sarah bin Yeldda al Mussouf.

Mais tarde, na única taverna existente em Pedramusgo, apreciando uma das cervejas mais caras da minha vida, unicamente por ser proibida pelo execrável arquidruida da cidade, tivemos de explicar ao Eygolan a estratégia tomada.

Tudo bem, não o conheço pessoalmente, tampouco já ouvi falar de sua pessoa, mas alguém que proíbe a cerveja só pode ser no mínimo detestável!

Acabamos chegando ao consenso de não cumprir imediatamente a tarefa proposta por Abbul Safah, mas sim verificar a autenticidade desta história com a própria Sarah, que obviamente já teria mudado de nome.

E descobrimos que haviam duas calishitas residentes naquela aldeia.

Décimo Primeiro dia – A Expulsão

Sammira era a esposa do ferreiro, e ao deixar meu machado para ser afiado perguntei informalmente há quantos anos ela morava em Pedramusgo. A simpática senhora respondeu, afável:

“– Desde quando nos casamos, quase quinze anos atrás. Pode vir buscar seu machado na hora do almoço, senhor anão!”

A resposta não me convenceu de pronto, mas tínhamos outra calishita suspeita, então fomos até esta. Com ela, havia um incômodo detalhe: Najila era a serviçal do arquidruida Arkaneus, governante do povoado.

Soubemos que este não estava na vila, mas era previsto que chegaria ainda no dia de hoje. Preparei a magia “zona da verdade”, que apesar de não obrigar as pessoas afetadas a falar, ao menos impede que mintam, e nos dirigimos para a maior casa da aldeia, no topo duma colina.

De fato, fomos atendidos por uma mulher com longo cabelo negro e marcantes olhos verdes amendoados, usando um turbante e uma tiara com um pequeno rubi. Eygolan, munido de toda a sua falta de sensibilidade, foi direto ao ponto inquirindo a moça a respeito de ter entregue seu povo aos mercenários. Só tive tempo de conjurar minha magia!

Reticente, a moça tentou desviar do assunto, mas foi desesperadamente astuta quando percebeu que não poderia mentir, e tentou fechar a porta antes que pudéssemos entrar.

Para coroar sua delicadeza, o paladino botou o pé armadurado no batente e não a deixou concluir sua ação, mas alguns aldeões começaram a subir o morro fortemente armados com patéticas ferramentas de lavoura e carpintaria. Trêmulos, os homens recomendaram que aguardássemos a chegada de Arkaneus além das muralhas, e para não aumentar a confusão resolvemos passar pela taverna para pegar nossos pertences.

A hostilidade era latente, e quando deixamos a estalagem, meu machado e as moedas que tinha pago adiantadamente pelo serviço haviam sido jogadas na rua, em frente à fachada da ferraria.

Humpf! Eu mesmo terei que afiar a lâmina do machado!

Kaduim, nitidamente divertido, desafiava os aldeões a atacarem, mas estes tentavam manter uma postura decente, debilmente apontando suas “armas” para nós.

Quando passávamos pela praça, um velho senhor exigiu saber por que motivo causávamos problemas em sua vila. Eu e Kaduim iríamos embora, deixando-o para trás, mas Eygolan habilmente o convenceu a ouvir a história.

O ancião era Arkaneus, e fomos para sua casa, onde o druida compreendeu o conteúdo do pergaminho entregue por Omar. Como Najila não soube – ou não quis – se explicar, o arquidruida a agradeceu pelos três anos de serviço competentemente prestado, sobretudo nas “artes da matemática”, mas afirmou que ela não se mostrou confiável, rendendo-a magicamente e a entregando a nós desacordada. Ele complementou categoricamente:

“– Desejo que vocês jamais regressem a Pedramusgo! Passem no estábulo e peguem um burro para levar Najila, ou qualquer que seja seu nome. Espero que você, Eygolan Oris, servo de Helm, aja como um paladino e realmente seja justo para com o destino desta mulher.”

Deixamos o povoado e viajamos para o sul durante algumas horas. Anoiteceu e agora estamos acampados próximo de uma atalaia, a um dia de viagem das Montanhas da Lança Estelar, entre Pedramusgo e Zazesspur. Najila – ou Sarah – ainda está amarrada, mas de posse de seus pertences pessoais. Espero que ela diga a verdade o quanto antes, pois continuamos detestando a ideia de entregar uma mulher a um bando de marmanjos covardes com espadas curvas.

P.S.: Já posso imaginar a reação de Eygolan caso um dia leia esta parte do relato:

“– Um anão bêbado como você querendo me falar sobre sutileza!?”

Agora deixe-me parar de gargalhar e fechar logo este diário, antes que o nobre paladino se mostre curioso!

Décimo Terceiro dia – Redenção

Ah!, o destino!

Mesmo nas poucas vezes em que se mostra doce, oferece aquela pitada amarga que nos faz refletir sobre nossas escolhas de vida.

Escrevo estas palavras sentado em um barco, ao som dos acordes do talentoso Kaduim, banhado em sangue, numa praia, até então, desconhecida.

Mas voltemos primeiro à noite de anteontem, para manter alguma ordem cronológica neste diário.

Najila finalmente decidiu falar. Embora não apresentasse argumentos, o que nos fez mantê-la amarrada por mais tempo, ela repetidamente dizia que estávamos cometendo um terrível engano, e que seríamos mortos sem piedade caso rumássemos para Zazesspur e a entregássemos ao Abbul Safah.

Uma ventania nos avisava da possibilidade de chuva forte, então levantamos acampamento e, dentre as opções que tínhamos, resolvemos apressar o passo para uma vila próxima, chamada Port Kir, pois imaginamos que não seríamos recebidos à alta hora da noite em que projetávamos chegar ao forte de Kirgard.

Pois bem! Ao retirar a mordaça, a calishita afirmou ter de fato traído seu povo, porém defendeu-se dizendo que o fizera para que sua filha fosse libertada, o que aparentemente acabou não ocorrendo, dado que ela não teve notícias do paradeiro da criança nos últimos anos.

“– Além disso, nossa cidade estava condenada, tanto pela fúria dos inimigos em cerco quanto pela peste que assolava a população. Tudo o que fiz foi abreviar o sofrimento deles e tentar salvar a mim e a minha menina.”

“– Continua sendo uma transgressão grave, moça.” – Sentenciou Eygolan, firme.

– Um crime é um crime. – Declarei. – Mas o amor e o desespero envolvidos no caso, a meu ver, atenuam a gravidade das coisas.

“– Se é que ela está falando a verdade, meus caros. Assim como podemos não acreditar nela, podemos duvidar de seu conterrâneo que nos contratou.” – Ponderou Kaduim. “– Acho que jamais saberemos a verdade completa, mas precisamos tentar chegar o mais perto dela possível, antes de entregar a mulher.” 

Entramos em um consenso, assim como entramos na vila de Port Kir, que sabíamos ter não mais que quatro mil habitantes. Contudo, o local estava em polvorosa. Uma série de barracas de militares pontuava a estrada ao longo das imediações, e um arauto gritava aos quatro ventos, mesmo àquela avançada hora:

“– O duque está na cidade! Comportem-se adequadamente, cidadãos, pois a pena por atacar um nobre é a morte! Não haverá piedade!”

Kaduim torceu o nariz para ele e procuramos uma taverna para que eu tomasse uma cerveja e o gnomo ganhasse algumas moedas com sua música. Para isso, adentramos a estalagem Adaga Dourada, mas a recepção não foi exatamente o que esperávamos.

“– Eu não acredito que vocês estão aqui!” – Soou uma voz familiar. Detestavelmente familiar, preciso acrescentar. “– Procuramos vocês por toda parte.”

Olhei para o lado e vi a aproximação do capitão Goghar, que, ao que tudo indica, havia sido promovido a tenente. Naquele instante eu soube que teríamos encrenca. Encrenca das grandes.

“– Temos notícias dos forasteiros. E de Athas.” – Com estas palavras, Eygolan atenuou a raiva de nosso superior e tomou as rédeas da conversa, pois fomos convidados a nos sentar, e comida e bebida surgiam em nossa mesa como que por mágica.

Desta forma, me perdi em meio ao banquete, pois tudo era tão aprazível que eu não poderia aguardar mais. Ao longo dos comes e bebes, reconheci dois dos oficiais que acompanhavam Goghar. Um elfo altivo chamado Malluth Eyllisarnith, que é um mago, pelo que já ouvi falar sobre ele, e um astuto halfling que, se não me engano, se chama Larry.

Obviamente, as notícias que eles traziam eram de que não haviam localizado os forasteiros, então Kaduim narrou as batalhas passadas em que nos deparamos com eles.

Eu comia, bebia e me divertia até que, bem mais tarde, Eygolan chegou com um resumo das tratativas:

“– Os militares de uma das atalaias ao longo da estrada deram a notícia de que um velho senhor, cuja descrição poderia ser Athas, havia passado em direção às montanhas. Ele foi seguido por quatro guerreiros com vestes estranhas cerca de uma hora depois, e em seguida a estrada foi bloqueada por um deslizamento de terra, provavelmente criminoso. Por isso Goghar disse que vamos contornar o cabo em direção ao sul, em um barco que nos levará a Zazesspur, em troca de investigarmos o desaparecimento de um navio-correio que faz este trajeto diariamente e não havia retornado desde ontem.”

Além disso, foi exposta a questão de várias caravanas que vêm sendo atacadas pela estrada durante meses, e nisso fiquei sabendo que Port Kir é território de um conde que é responsável pela defesa do reino e responde diretamente à rainha Zaranda.

É claro que havia muita informação para mim, então deixei que meus amigos decidissem o que fazer enquanto fui tomar mais uma ou duas canecas antes de dormir. Pelo jeito, havia um duque, um conde, um lorde e uma lady tratando a respeito de diversos problemas, e todos aqueles nobres tentavam influenciar os militares presentes, inclusive o tenente Goghar, a agir com seus homens em prol de suas causas divergentes.

Como eu dizia, aquelas últimas quatro cervejas me fizeram ter uma excelente noite de sono. Quando acordei, cruzei com uma bela moça nos corredores da taverna. Reparei que ela estava paramentada, envergando um gibão de couro curtido e portando duas armas na cinta, uma boleadeira e uma cimitarra.

– Bom dia, senhora! – Saudei, e ela me respondeu com um sorriso.

Desci para tomar um café da manhã de campeão, já que estava tudo pago pelos militares, e é óbvio que estou falando em boa cerveja logo cedo.

Pouco depois, Kaduim, que havia recebido uma medalha e se tornado um agente da milícia como nós, também desceu as escadas, acompanhado pela moça com quem havia cruzado, e qual não foi meu espanto ao perceber que ela era a Najila!

“– Como eu venho tentando convencê-los desde ontem, posso ajudá-los!” – Ela disse, ligeiramente petulante.

O gnomo simplesmente ergueu as mãos, como que dizendo que a culpa não era dele, e Eygolan estava visivelmente desconfortável.

Seguimos o paladino até o atracadouro, onde haviam dois barcos rápidos, cada um com suas velas e três pares de remos. Embarcamos em um deles, junto do tenente e mais alguns soldados, enquanto o outro também foi preenchido por militares.

Ambos contornavam o braço de montanha que invadia o Mar das Espadas, lutando contra os ventos e as ondas até que acabamos avistando os destroços de uma grande embarcação.

“– Piratas?” – Indagou o tenente.

“– Piratas não roubariam um navio-correio. Creio que sejam bárbaros, selvagens…” – Opinou Najila.

A calishita parecia ter razão. Corpos e cartas estavam espalhados em meio às pedras, e os ferimentos diziam tudo: mortes praticamente gratuitas, de civis que viajavam em um navio-correio praticamente sem defesas.

O mistério estava resolvido, mas alguém visualizou ao longe, para dentro da baía, uma coluna de fumaça densa. Anoitecia, e Goghar determinou que fôssemos investigar. Os barcos foram manobrados para desviar das rochas que ocultavam uma pequena praia, onde vimos algumas figuras de costas para nós.

Ouvi o típico ruído das cordas dos arcos de nossos soldados se retesando, e gritei instintivamente:

– Parem! São fêmeas!

“– São orcs!” – Bradou o tenente, e em seguida deu a ordem para seus arqueiros atacarem. Eram cerca de vinte soldados, que atiraram as flechas e desembainharam suas espadas, avançando contra as mulheres orcs segurando seus bebês.

Consegui puxar dois soldados para trás, mas os outros perfaziam uma completa carnificina, e para meu completo desgosto e consternação, Eygolan estava entre eles, assim como Najila.

Talvez fosse tudo por conta da cultura e dos costumes inerentes aos povos livres, que são assim chamados a despeito de estarem presos a um conglomerado de ideias preconcebidas e preconceituosas. Eu não posso mudar o mundo, mas tentarei transmitir minhas ideias de liberdade por onde passar, bem como aos que lutam e viajam ao meu lado.

Vi que não poderia evitar o massacre, então por algum motivo cruzei o tumulto e comecei a procurar alguma barraca ou esconderijo em que estivessem as crianças daquele povo. Os defenderia com minha vida, se necessário.

Reparei que o baixinho Larry e o elfo Eyllisarnith analisavam o campo de batalha e não participaram das atrocidades, assim como Kaduim, que permanecia no barco avisando para que os enfermos fossem levados a ele.

Não encontrei as crianças, mas ouvi sons de batalha adiante, e avancei para conseguir vislumbrar que um destacamento de anões atacava os orcs machos. Ou melhor, os massacravam.

O tenente e seus homens chegaram, pouco depois de o último orc ser morto.

“– Larguem suas armas!” – Ordenou Goghar, no idioma comum.

“– Mais intrometidos para matarmos.” – Retrucou o líder dos anões, no idioma de nossa raça.

Assim, percebendo que eles não falavam a mesma língua, decidi intervir, nem que fosse para servir como um mero intérprete.

– Basta de mortes! – Gritei em anão. – Por Moradin, não somos inimigos, e não precisamos derramar mais sangue!

“– Há um traidor entre eles!” – Respondeu aquele que parecia ser o líder dos anões. – “Matem-nos!”

Eygolan e Najila haviam sumido quando a batalha irrompeu, e quando cheguei à linha de frente, a cena diante de mim me deixou embasbacado por um fugaz instante.

Três dos guerreiros anões tinham em seus escudos símbolos de picaretas, com uma gema em uma das extremidades afiadas e uma gota de sangue na outra.

Aquilo cortou meu coração. Eram os traidores de nosso povo. Servos de Abbathor, e eu sabia seus nomes: Nor, Durl e Barundar. Os discípulos de Dunnabar, líder dos anões mineiros que iniciaram a revolta causadora do ocaso do que um dia foi o promissor clã Rocha Afiada. Eles olharam para mim, e Nor perguntou a seus companheiros, em voz alta o suficiente para que eu pudesse ouvir:

“– Aquele não é o amigo do Presa-de-Ferro?”

Experimentei o maior frenesi de sangue de minha vida.

Num momento eu era o pacifista, mas reconheço agora que absolutamente perdi o controle de minhas ações assim que conjurei uma magia de força e me lancei em direção a Nor, que era o mais próximo.

Meu machado rodopiava, e tudo o que eu via à minha frente eram os entalhes da picareta sangrenta, provavelmente o símbolo que aqueles bastardos dissidentes haviam adotado para si.

Eu os atacava olhando em seus olhos, sabendo da força que eles certamente possuíam, e eles me davam um combate franco.

A esta altura, os guerreiros de Goghar haviam sido em sua maioria derrotados, e eu estava ao lado dele, enfrentando anões malignos. Larry, astuto, movimentara-se sorrateiramente até as costas de meu oponente Nor, e estocava com sua espada curta.

Aquele anão merecia isso, assim como os outros servos de Abbathor!

O mago Eyllisarnith se mostrou a peça mais eficiente de todo combate, lançando magias de fogo, raios chocantes e orbes de ácido, afastando o perverso Durl de seu alcance.

Mas, como sei por também ser um conjurador, embora diferente, as magias têm um limite diário, e as dele pareciam ter acabado. Contudo, o elfo não se abalou, empunhando seu arco longo e atirando uma única flecha precisa, que cruzou os ares e se enterrou fundo no peito de Nor, rasgando a armadura e o coração negro que ali batia.

Durl veio de novo em seu encalço, mas acabou pego por Najila e Eygolan, recebendo o que tinha direito. Quando fui atacá-lo, escorreguei numa poça vermelha e o ímpeto do movimento fez meu machado voar para longe.

Com um golpe de picareta, Barundar ceifou a vida do bravo tenente Goghar. 

Aquele anão era vil. A ironia de portar uma picareta até hoje mostrava isso. Ele ostentava um escudo-torre metálico e uma armadura de batalha completa, e atacava com a potência de um gigante.

Mas era nosso alvo, e com aquele sujeito eu lutaria até a morte!

Larry mais uma vez se esgueirou e o atingiu numa estreita fenda de sua armadura, fazendo o sangue jorrar de seu flanco. Barundar se virou e o atacou com força, e o forte impacto do golpe foi parcialmente amortecido pelo camisão de malha élfica do halfling.

Aproveitei a chance e, sacando uma maça que costumo carregar apenas para emergências como esta, saltei e coloquei todo o meu peso e força para atingir a lateral do rosto do inimigo.

Meu próprio braço estremeceu com o golpe, e vi alguns dentes saltando da boca e indo ao chão, assim como o corpo de Barundar.

Ajoelhei-me apoiado sobre a arma e rezei até agora há pouco, quando os primeiros raios de luz do amanhecer tocaram minha face e meus amigos me diziam que tinham novidades que poderiam me interessar.

Eygolan e Najila haviam encontrado um baú na cabana do líder orc daquela extinta tribo, bem como uma mulher grávida, que não resistiu. Disseram que em seu corpo estava fixada uma placa com os dizeres, devidamente traduzidos por Kaduim: “Propriedade de Dunnabar”.

Além de um mapa de algum covil nas montanhas, o baú continha registros de negociações de escravas em idade fértil entre mercadores de escravos e Dunnabar, aquele bastardo. Aparentemente, os humanos criminosos extorquiam o líder anão, exigindo cada vez mais para entregar cada vez menos.

Pelas deduções de nosso gnomo, aquele agrupamento de anões queria se reproduzir, e ele tinha ouvido que reproduções entre humanos e anões geralmente geram crianças anãs, quando vingam. Ou seja, Dunnabar queria ampliar seu clã e, segundo as poucas palavras que a mulher disse antes de morrer, ele agia como um louco, um fanático, como se tivesse uma missão dada por algum deus.

E eu sabia que se tratava de Abbathor.

Ela afirmou, ainda, que fora maltratada pelos orcs daquela aldeia, que a raptaram numa incursão ao covil dos anões, onde era tratada de forma ainda pior. E que a maioria dos anões estivera ali presente, logo, o esconderijo poderia estar mal guarnecido. Quando morreu, a expressão em sua face era de missão cumprida, pois sabia que nós tínhamos um mapa e pretendíamos consagrar a vingança que ela desejara desde o dia em que havia sido comprada por Dunnabar.

A atitude de puxar dois de nossos soldados que atacariam as mulheres orcs, que pode me dar total descrédito em relação aos oficiais e provavelmente me bote para fora da milícia ou me acarrete punições severas, tinha salvado a vida de tais soldados, que eram cuidados por Kaduim e ora repousavam na areia da praia. Agora que perdemos o tenente Goghar e o restante dos soldados, Eygolan é o capitão da minguada tropa.

Apesar disso, a milícia de Velen já me parece algo distante. Não sei se acabarei retornando para lá um dia, a não ser que consigamos cumprir a missão que nos foi dada, o que me soa hoje bastante improvável. Mas me sentirei feliz e realizado ao concretizar a meta de minha vida, que é acabar com os cultistas de Abbathor que arruinaram o clã. Berrei para a montanha a nordeste de onde estava:

– Se Clanggedin e Moradin quiserem, nossas vidas não terão sido em vão, Thamûk Presa-de-Ferro, esteja onde estiver, meu querido primo!

Em tempo, ao longo da noite e nas primeiras horas do dia em que nos recuperávamos, Kaduim compôs os seguintes versos ao dedilhar seu alaúde com notas tristes e de certa forma sombrias:

O massacre

 

Elas não pareciam estar a par

De todo o mal que viria do mar

Mulheres, crianças, todos assustados

Em um piscar de olhos: ensanguentados

Humanos em sua arrogância não tardam a julgar

Todas as raças que se oponham, só lhes resta sangrar

Uma batalha rápida e desleal

Qual será a verdadeira origem do mal?

Abruptamente se finda esta história, sem mais informações a respeito dos damaranos ou de meus companheiros, pois este anão sente-se satisfeito com sua vingança, que foi maior do que ele poderia ter almejado.

Aqui me desligo da guarda de Velen e despeço-me de meus amigos, o humano Eygolan, o gnomo Kaduim, o elfo Eyllisarnith e o halfling Larry. Entrego-lhes este diário e todo meu dinheiro, assim como o calor que resta em meu coração.

Não vou precisar de nada disso lá, dentro da gruta dos cultistas de Abbathor.

 

Posfácio de Kaduim:

Teimoso feito uma mula velha e caduca, Thaumor ajustou sua armadura, colocou o elmo, segurou firme em seu machado e caminhou a passos decididos para a caverna.

Esta aventura foi jogada nos dias: 

Aventureiros:

Yan: Eygolan (humano, paladino)

Rodolfo Sinopoli: Thaumor (anão do escudo, clérigo)

JR Kramm: Kaduim (gnomo, bardo)

Lucas Leal: Draven (humano, ranger)

Caroline Sinopoli: Larry FairFoot (halfling, ladino)

Araken Sinopoli: Malluth Eyllisarnith (elfo do sol, mago)

Mestres:

Danilo Henrique / Renê Moreira


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