ContosVelho Oeste

O conto de Lone Phil

Escrito por: Nilson Doria

BadLands é um cenário de faroeste que mescla elementos históricos e sobrenaturais no qual grupos de aventureiros vivem suas histórias. Phil é um desses aventureiros. Este é o conto de Lone Phil, no qual é contada a história de sua vida antes de reunir-se com seus companheiros Tony Chapéu de Cone, Lucky Lou, Brody Hampton e Lupita. Neste primeiro momento de sua jornada, Lone era apenas um caçador recluso. Ele viveu sua vida isolado, sem conhecer nada sobre suas origens, criado por seu pai adotivo, um ex-padre excomungado por sua amizade com os Comanche. Quando finalmente decide confrontar o tutor sobre seu passado, eis que ele se revela por si só e da pior maneira possível. Assombrado pelos eventos trágicos, Phil abandona a ermida onde fora criado e passa a vagar pelo mundo sem rumo. O passado, entretanto, o persegue em sonhos cujo sentido é revelado por um sábio comanche que lhe vaticina o futuro: o destino de Phil é reunir sua alma dispersa em dois corpos. O primeiro passo para isso é encontrar o misterioso “homem-de-um-chifre-só”.

O conto de Lone Phil

Eles e nós

— Então Comanche não é como eles se chamam?

— Não, meu filho, é assim que nós e os inimigos deles os chamamos.

— Mas se é assim… como eles se chamam, então.

— Numunuu.

— Então é assim que eu os chamarei, não sou inimigo deles. Não mais do que dos brancos, pelo menos.

— Você é muito jovem, sabe pouco. Quinze anos, não é? Já sabe que isso pode te trazer problemas, certo? Sabe o que me custou essa atitude, não sabe?

— Acho que sim… foi por isso que te expulsaram, né, velho?

— Sim, por ter feito amizade com eles.

— Eu não entendo por que isso é ruim.

— Isso não é ruim.

— Mas agora você é um exilado. Não parece que você goste disso.

— Não gosto, mas é melhor assim.

— Se eles te expulsaram, não quero ser um deles.

— Disso você não pode escapar. Você nasceu entre eles, e sua pele sempre dirá a eles que você é um dos seus.

— Enquanto eu viver aqui, não precisarei lidar com isso.

— Pode ser, mas temo que isso não possa durar para sempre. Eu não durarei para sempre, você sabe.

— Eu sei… Não gosto de pensar nisso. Enquanto você estiver aqui não preciso me ocupar disso.

— É verdade, cada coisa a seu tempo, meu filho. Cada coisa a seu tempo…

— Mas e sobre minha mãe, quem era ela?

— Silêncio! Olha lá, a armadilha disparou, pegue o rifle. A janta não pode escapar.

— Mas…

— Cada coisa a seu tempo, meu filho. Cada coisa a seu tempo.

— O tempo das coisas é sempre agora, velho. Os homens é que põem ponteiros nelas, não há relógio na natureza.

— Você é que pensa, meu filho. O relógio das coisas e dos homens é Deus. Mas agora fique quieto. Olha lá, é um búfalo! Comida para mais de mês. E couro que vai fazer outro mês de comida quando o vendermos. Quieto.

Um aceno de cabeça foi a resposta de Phil para o velho. Seguiram sem fazer ruído até o animal.

Despedida

— Velho, estarei de volta em duas luas, se tudo der certo.

— Dará. Em duas luas nos encontraremos aqui.

— Alguma recomendação.

— Não, nenhuma. Você está pronto, meu filho.

— Estou?

— Sim, você é bom no que faz. Rastreia bem, tem pulso firme na hora do tiro. E limpa uma carcaça como ninguém. É tudo de que eles precisam. Além disso, sei que você se instruiu bem. Volta e meia encontro meus livros remexidos quando volto de minhas andanças…

— Não sei do que você está falando. Não reviro seus papéis, esses assuntos de outro mundo não me interessam. Só quero saber se você vai ficar bem.

— Tudo bem, eu não me importo se você mexeu neles ou não. Se fizesse segredo, os deixaria trancados. Não se preocupe comigo, não estou tão velho assim. Além disso, as provisões são mais que suficientes. Tenho carne seca para algumas semanas.

— Então está bem. Eles já devem estar me esperando. Vou indo…

— Espere!

— O que foi? Não estava tudo bem?

— E está. Não tenho recomendações, mas ainda não te dei minha benção. Será que a bênção de um ex-padre vale alguma coisa?

— Você ainda acredita nessas coisas?

— Não é porque fui excomungado que deixei de acreditar. Você sabe disso. Aceita a bênção de um padre excomungado?

— É melhor que nenhuma… — disse com um sorriso meio zombeteiro, meio feliz, no rosto.

— Então vá em paz, meu filho, que o Senhor te acompanhe. Ele nunca falha. Mesmo quando eu falhar, Ele não te falhará.

— Que papo esse, velho?! Até hoje, nenhum dos dois me falhou.

— Fico feliz que pense assim. Mas lembre-se daquelas palavras que já te repeti, e já deviam ter entrado nessa cabeça dura: “Maldito o homem que confia em outro homem”. Confia no Senhor, só Ele te guardará quando eu não estiver mais aqui.

— Tá certo, velho, tá certo… Mas quem parte sou eu, você ficará.

— Que assim seja, meu filho, que assim seja!

— Está na hora.

— É a hora. Cada coisa em sua hora. Vá, que Deus esteja contigo.

— Até, velho!

E Phil tocou seu cavalo em direção ao ponto de encontro com a caravana. Não era a primeira vez que se despedia do velho, mas o velho só ficara mais velho desde a última vez. Agora dera para caducar, livros remexidos! Partiu preocupado.

Caravana

Não gostava muito de estar entre gente branca. Achavam que podiam comprar tudo com dinheiro. Ele precisava do dinheiro, mas sabia que nem tudo se comprava. Por exemplo, não compraria um guia Numunuu, que seria a melhor opção para os seus contratantes. Phil conhecia bem a região, sabia ler os sinais e se orientar, atirava bem, é verdade. Ainda assim, nada que se comparasse a quem nasceu de quem nasceu naqueles ermos. O dinheiro também não pagaria pela paz da solidão do deserto sob aquela bela lua cheia. Se pudesse, abriria mão do dinheiro por ela. Mas não podia, não com o velho ficando, a cada dia, mais velho.

Não fossem tantas espingardas, rifles e pistolas, estariam perdidos, pensou Phil consigo mesmo. Como eram estúpidos! Outro pensamento que irrompeu em sua mente. Faziam muito barulho. Falavam demais, ouviam de menos. Confiavam demais em si mesmos. “Maldito o homem que confia em outro homem”, lembrou as palavras do velho. Ele estava certo, mais uma vez. Phil não confiava nos homens. Mas também não conhecia bem esse Deus em quem devia confiar. Confiava nos sinais da natureza e em seu rifle.

Ouviu passos atrás de si. Concentrou-se para manter a mira.

— E aí, garoto, vamos lá! Eles já estão todos cercados!

— Ainda não.

— Tá esperando o quê?

— A hora certa.

—  E ainda não é a hora? Olha lá, estão todos bem agrupados, se começarmos agora abateremos a maioria deles. É agora!

— Só se você quiser ficar viúvo. — Acenou com a cabeça para um bando de búfalos que ainda estava apartado do resto e que estavam com o olhar apontado na direção da caravana onde apenas as mulheres e crianças descansavam nas carroças.

— Hmpf… quanto tempo mais? Se eles não vieram até agora, não virão mais. É um risco que temos que correr.

— Eles virão. A isca é boa.

— Se eles não vierem, a culpa é sua! Vou descontar do seu ordenado. Bicho-do-mato atrevido!

— Se eles vierem quero o dobro, então.

— O quê?! Mas é um atrevido mesmo! Moleque! Eu vou atirar agora mesmo, quero ver você engolir essa empáfia toda!

— Hahahahaha! O moleque nos trouxe até aqui, chefe… olha esse rebanho! Vai amarelar da aposta?

— Moleque, isso é uma aposta?

— O dobro ou nada.

— Eu sou sujeito-homem, aceito sua aposta, cretino. Pago para ver!

Foram lentos quinze minutos. Longo um quarto de hora, em que Phil permaneceu em silêncio com o rifle em riste, e os outros brancos tensos, tagarelando. Apostando em cima da aposta entre Phil e o chefe da caravana. Phil chegou no limiar de abandonar aquilo tudo, ante a algazarra. Não era o dobro do dinheiro que o segurava, mas o dever. Os ventos mudaram, o aroma da isca alcançou o bando disperso, dirigiam-se à armadilha. Chegara a hora.

— Agora! — comandou Phil.

O chefe deu o sinal. Saraivadas de tiros partiram de vários pontos elevados. Dezenas de búfalos caíram. Os que fugiram dispersaram a esmo, poucos cruzaram as carroças estacionadas, sem causar dano, contudo.

Sucesso retumbante.

Phil ganhara o dobro do pagamento. O chefe, lucrara muito mais do que perdera para Phil. Bolsos cheios para todos os lados. Orgulho dobrado no peito de Phil. No peito do chefe da caravana, haveria orgulho ferido. Mas orgulho não se contabilizava em dólares, e, portanto, em nada ele se sentia diminuído.

Resolução

Passadas duas luas e com os bolsos mais gordos, mais do que jamais estiveram até então, Phil retornou à ermida onde habitava com o velho que o criara. Era estranho retornar nestas condições. Sempre fora o velho quem lhe provera, desde que o adotara ainda bebê. Agora era ele quem trazia o sustento para a casa.

Nunca passavam muito tempo juntos. O velho se ausentava por longos períodos. Conforme Phil crescia, maiores eram os momentos de ausência. Porém ele nunca lhe faltara. Antes de partir sempre deixava provisões e recomendações para o pequeno Phil, e ele as seguia à risca. Phil nunca se ressentira por isso. Era a única vida que conhecia, não estranhava as ausências. Gostava da solidão.

No entanto, o que ele sabia sobre o velho? Muito pouco. Sabia que fora padre em uma Missão, na época que este ainda era um território mexicano. Perdera tudo pela sua proximidade com os Numunuu. Antes que as consequências fossem piores, ao saber da certeza de excomunhão, autoexilara-se. Recolheu alguns poucos pertences e retirou-se para uma área selvagem, dentro do território Comanche. Manteve pouquíssimos contatos com os brancos, americanos ou espanhóis. Apenas o suficiente que o permitisse comercializar sua caça, peles e remédios.

Sabe-se lá por que razão, o destino lhe trouxera o pequeno Phil, abandonado à porta da cabana que habitava, ainda bebê. Sabe-se lá por que o velho o acolhera e adotara. Phil era o mais próximo de uma família que o velho possuía.

Isso foi tudo o que o velho lhe contara.

Phil conhecia pouco do passado do velho e do seu próprio. O velho nunca revelara quem o abandonara, mas ele sabia — Phil podia sentir! E sobre seu presente? Apesar dos anos de convivência só sabia o que ele lhe ensinara, o jargão dos padres, um tal de Latim, a língua e costumes dos Numunuu, artes da caça, algo sobre cura. Muito sobre a natureza, um tanto sobre os homens, um pouco sobre Deus, nada sobre si.

O velho era a única família que Phil conhecera.

Esses pensamentos povoavam a mente do jovem enquanto voltava para casa com bolsos e farnéis cheios. Chegando à casa, estava resoluto, questionaria o velho sobre o que faltava saber. Sobre quem exatamente era o velho, sobre quem era sua mãe, sobre o porquê de ter sido abandonado. Sim, estava resoluto. Precisava obter respostas. Já não era uma criança, tinha 23 anos, era contratado pelos brancos, participava da vida e folguedos dos Numunuu de igual para igual. Já era um homem, havia chegado o tempo de conhecer estes segredos.

Era a hora, como o velho costumava dizer.

Solidão

Levantou acampamento. Último dia da viagem de volta. Faltava pouco para o confronto planejado com o velho. Phil sabia que não seria uma conversa fácil. Não importava, era uma conversa necessária. Passou a tarde cochilando sobre a sela. O cavalo conhecia bem a rota a seguir. O caminho era tranquilo até o ermo onde viviam isolados. Já estava há uma distância da qual podia divisar a casa, quando foi abruptamente desperto de seu torpor.

Uma sequência de disparos. Um tiro de espingarda, a espingarda do velho. Era fácil reconhecer aquele rugido. Um revólver sendo descarregado. Que revólver era aquele? Nem ele, nem o velho possuíam revólver. Não era arma de caça. O som dos disparos do revólver era de uma cadência sincopada, cruel. Sem hesitação Phil esporeou o cavalo.

Saltou de sua montaria ainda em movimento já com o rifle em mãos. Cuidadosamente perscrutou com o olhar a área frontal da pequena cabana. Havia marcas do casco ferrageado de um cavalo. Apenas um. Não parecia carregar mais que um homem. As pegadas davam a volta. O animal devia estar atrelado no alpendre dos fundos. Silencioso e atento, Phil começou a contornar a casa. Foi aí que a porta dos fundos abriu de súbito.

A mira de Phil encontrou os olhos do invasor, mas o gatilho não disparou. A arma estava perfeita, municiada. Foi o dedo de Phil que falhou. Paralisado. Não só o dedo do gatilho, mas o corpo inteiro. E, se ele acreditasse nisso, diria que sua alma também. Era inacreditável. A mira de Phil encontrou seus próprios olhos mirando de volta. Olhos cruéis e mesquinhos, com uma expressão que Phil nunca vira refletida antes. Ainda assim, indiscutivelmente, seus olhos.

A confusão de Phil deu tempo para que o invasor se desse conta de sua presença, alcançasse o cavalo e partisse em disparada, não sem antes gritar:

— O próximo é você!

O torpor aos poucos foi cedendo, Phil recobrou o juízo. O próximo seria ele! O velho, como estava o velho?! Esqueceu da aparição e desesperado adentrou a cabana apenas para ver o corpo do ancião caído ao chão, de bruços, a espingarda ainda em mãos, e com uma mancha de sangue se espalhando por sob ele. Virou o corpo pesado com cuidado, não queria piorar seu estado. O velho estava todo perfurado no tórax e abdômen, mas ainda teve forças para suas últimas palavras:

— Perdoe seu irmão, meu filho… seus pecados são os meus pecados…

— Acorde velho! Acorde! Quem, o quê?…

— Seu irmão, meu filho. Perdoe Ezequiel. É a minha hora.

Esta foi a única vez que a solidão não pareceu boa companhia para Phil.

Numunuu

Perder o velho não foi fácil. A bem da verdade, a vida nunca fora fácil para Phil, com ou sem seu preceptor. Agora, porém, além de mais difícil, a vida estava árida como o deserto. Era estranho aquilo… Estava pronto para confrontar o velho sobre sua família, suas origens, seu lugar entre os homens, de repente seu único parente de sangue conhecido ceifou a vida da única pessoa que ele podia chamar de família, prometendo que ele, Phil, seria o próximo.

O jovem Phil não gostava da companhia das pessoas. Preferia permanecer só sempre que possível. Sempre fora assim. Era um bicho-do-mato. Desde criança, quantas vezes não ouvira isso?! Arisco, seguindo e caçando codornas; curioso, sempre furtivamente bisbilhotando os afazeres do velho por detrás de seus ombros. Parecia um gato-do-mato. Mas agora era diferente. Antes ele não gostava da companhia das pessoas, agora ele não gostava das pessoas. Desconfiava de todos. Depois de ter conhecido o irmão, surpreendia-se desconfiando do reflexo em algum espelho ou água parada.

Depois do episódio que lhe deixara só no mundo, Phil recolheu seus pertences da cabana, algumas provisões, armas e munições, passou um longo tempo vagando sem rumo. Vagava para os ermos, para não encontrar ninguém, para que ninguém o encontrasse. Para não pensar em nada, para que nenhum pensamento o encontrasse. Mas o que ele evitava em vigília, vinha lhe visitar em sonho. Pesadelos horríveis o assaltavam durante a noite. A cada dia afastava-se mais e mais da ermida. Fugia como se os pesadelos emanassem de lá.

Caçava, acampava, mudava de paragem. Caçava, acampava, nova mudança. Permaneceu assim durante todo o tempo que o estoque de munição que trouxe da cabana durou. E ele fez tudo para que durasse muito, procurando não desperdiçar nenhuma bala. Isso, é claro, não podia durar para sempre.

Ele demorou bastante a notar que sua munição estava prestes a acabar, foi surpreendido com alguns livros e anotações do velho guardados dentro das caixas que ficaram no fundo da mochila. Estranho aquilo, nunca soubera que o velho guardava esse tipo de coisas ali. Pelo contrário, o velho mantinha tudo organizado na sua escrivaninha, em estantes e gavetas, meticulosamente. Talvez já estivesse ficando demente mesmo.

Subitamente, com esta descoberta, decidiu que era a hora de voltar a encontrar pessoas. Não tinha disposição para ir a nenhuma vila ou cidade. Decidiu fazer comércio com os Numunuu. Sabia de um assentamento próximo. Tinha algumas peles guardadas, coisa que seria apreciada. Estava certo. Passou um par de dias acampado próximo ao assentamento. Desconfortável com a presença de tantas pessoas, é verdade, mas a face de nenhuma delas se parecia com seu reflexo, isso era o bastante.

Só em sonhos era visitado por Ezequiel. Durante a madrugada do segundo dia que passara entre os Numunuu um pesadelo mais vívido que os anteriores o assombrou como nunca antes. Febril e meio sonâmbulo alcançou o rifle e deu dois disparos que furaram o teto de sua barraca. Em pouco tempo seu acampamento estava cercado por guerreiros com estado de ânimo entre curiosos e agressivos. Mas Phil não percebeu nada disso, estava desacordado e trêmulo, empapado em suor e calafrios.

Acordou aos poucos, sem fazer ideia de quanto tempo se passara. Estava em um tipi maior que o usual. Um homem alto, com o rosto vincado de rugas profundas, marcas da idade e do muito que testemunhara, pintado com padrões triangulares bastante complexos, estava curvado sobre ele. Com a mão direita segurava um longo cachimbo e com a esquerda defumava a superfície do tórax de Phil com um ramo de ervas fumegantes. Quando o sábio percebeu que o jovem branco havia despertado, parou o serviço em silêncio e estendeu-lhe uma cumbuca, indicando com um gesto que ele deveria comer de seu conteúdo.

Um homem da cidade teria sentido repulsa e náusea ao vislumbrar o conteúdo da vasilha. Uma massaroca de fígado de búfalo cru triturado com oleaginosas locais. Para Phil aquilo não causava estranheza, já comera coisas com aspecto muito pior. Além disso, já havia ouvido falar que os Numunuu fabricavam curas com estes ingredientes. Comeu com as mãos o conteúdo oferecido. O sabor era melhor do que esperava. Mais do que isso, a mistura quase imediatamente o fortaleceu. Sentiu-se mais disposto de pronto.

— Obrigado! — disse na língua do anfitrião.

— Melhor agora?

— Muito melhor.

— Bom.

— Sua cura é poderosa.

— Mas não suficiente.

— Por quê?

— Seu espírito está partido. Só metade está aqui.

— Como assim?

— A outra metade vaga longe. Procura por você.

— Acho que sei do que está falando, ancião. Ezequiel…

— Não sei o nome, só que não está em paz. Quer a sua metade, quer ser inteiro.

— Eu também gostaria.

— Chegará o dia. O espírito não pode viver separado em dois corpos.

— E quem de nós vai sobreviver?

— Os dois e nenhum.

— Desculpe, mas isso não me ajuda muito.

— Para além da ajuda, você está. O destino apenas se cumpre, e a seu tempo. Não há como facilitar as coisas.

— Obrigado, de todo modo. Acho que posso seguir agora.

— Sim, cumpri meu dever. Mas você não pertence a este lugar. Deve partir. Vá para o seu povo, é entre eles que seu destino se cumpre.

— Não tenho povo, sou sozinho.

— Não foi isso que os espíritos me disseram. Você vai encontrar sua metade, ou ela vai encontrar você, dá no mesmo. Mas antes você deve voltar para os brancos. Troque o fruto de sua caça com o homem-de-um-chifre-só. Não o deixe até que receba sua parte de volta.  É o que a minha visão mostra.

— Eu não sei o que isso quer dizer.

— Isso não quer dizer nada. É assim que será.

O homem de um chifre só

Logo depois do enigmático encontro, Phil reuniu suas coisas e partiu. Não sabia como interpretar a visão do ancião, na verdade, nem sabia se acreditava nisso tudo. Não tinha simpatia pelos deuses, habitassem eles as igrejas ou as planícies. Nunca se sentiu conectado a nada disso. Era apenas um caçador, conhecia a natureza e as suas habilidades. Do outro mundo, não sabia nada. Nada mesmo, a ponto de nem duvidar dele. Sentia apenas indiferença a algo que nunca testemunhara.

De toda maneira, aquilo era muito estranho. Como o ancião sabia tanto sobre ele? Será que o outro mundo finalmente se manifestara em sua frente? Podia ser também que tivesse delirado de febre e deixado coisas escaparem durante o devaneio… Não podia decidir entre essas duas coisas. Tampouco perdeu tempo com isso. Não importava. O que quer que tivesse acontecido na cabana do velho sábio, foi o bastante para lhe recuperar as forças e afastar os pesadelos. Além disso, saiu de lá com a certeza que reencontraria Ezequiel, e que apenas um deles sairia vivo deste encontro.

Enquanto refletia sobre esses assuntos, cavalgava a trote lento em direção a uma cidade próxima. A cidade ficava sobre uma pequena elevação na planície, um breve platô perdido no meio do nada. Um grupo de colonos achou que a posição acima da superfície garantiria uma camada extra de segurança. O sol se punha atrás dele esticando as sombras em direção à cidade. Apercebendo-se que a noite estava próxima, despertou do transe de seus pensamentos.

Foi nesse instante que sua atenção foi deslocada para uma das sombras projetadas e reteve seu avanço. Seus olhos arregalaram e seu coração gelou. A sombra era de um homem montado, um homem de cabeça pontuda. Hesitou em olhar para trás. Podia ouvir o outro cavalo se aproximando, veloz. Em pouquíssimo tempo ele o alcançaria. Antes disso, porém, o saudou com grande entusiasmo:

— Olá, amigo! Amigo caçador! Eu tenho uma proposta que vai mudar seu destino!

Não cabia mais dúvida, era o homem-de-um-chifre-só.

  1. O negócio de uma vida

— Então, veja só. Você era exatamente quem eu estava procurando. Eu sou um empreendedor e tenho este grande projeto. Quer dizer, ainda não é grande coisa, a não ser como projeto, como projeto é grande! Vamos ficar ricos! Mas, por enquanto, o que eu tenho é só esse protótipo, aqui. Hahah! Vejo que você não consegue tirar os olhos dele, não é, amigo? É disso que estou falando, essa é a grandeza do projeto! Não é possível ser indiferente a este design inovador e elegante. O nome disso, meu amigo, é moda, design!

— Então, isso na sua cabeça não é um chifre?

— O quê? Um chifre? Não! Hahaha, nem aqui debaixo! — disse tirando o chapéu em forma de cone — Mas, talvez… do ponto de vista moral, eu não sei… talvez haja, talvez não… acho que nunca vou saber… Sabe como é, sempre o último a saber! E já não importa, já faz tempo que deixei a Nova Inglaterra, isso é passado. Hahahahah, mas não! Não há chifre aqui.

— O amigo vai me desculpar, mas ainda não entendi seu grande projeto.

— Hm… vejo que você, meu amigo, talvez não tenha tino para moda — disse o homem de chapéu de cone, enquanto examinava as peles e farrapos com os quais Phil estava vestido — mas isso não é problema. O segredo de uma sociedade é que cada um faça a sua parte e o faça bem, mesmo que não domine o negócio como um todo. Vejo que de caça e peles você entende. Isso é o bastante! Eu entendo de design e vendas. É infalível! O destino nos uniu!

— Talvez eu não seja muito letrado nessas coisas mesmo. Nunca me interessei por isso.

— Sim, sim… eu entendo, o amigo é um sujeito rústico. Quem sabe assim seja até melhor. Sabe, o processo criativo é solitário. A bem da verdade, há certas atividades em que uma cabeça pensa melhor que duas. Duas cabeças criativas ficam se batendo, como dois bisões disputando território. Não estou insinuando que eu, ou o amigo, nos pareçamos com bisões. Que até são bichos de garbo, diga-se. Não seria mal parecer com um bisão. Mas não é disso que estou falando. Estou querendo dizer que em nossa sociedade, eu não interferirei no seu trabalho, e acredito que o amigo não terá interesse em interferir no meu, e isso é muito importante.

— O amigo me desculpe novamente. Que sociedade?

— A nossa! Veja bem, eu já tenho este protótipo patenteado em Massachusetts, uma bela peça! Mas acontece que estou com pouco capital. O amigo não imagina quanto custa um processo de patente! Um absurdo. O sujeito tem uma ideia e tem que pagar e se meter em um monte de burocracia para que a ideia que ele teve sozinho, em momento de inspiração divina, continue sendo dele… Mas é assim a vida. Bom, enquanto eu tenho a ideia, falta a matéria. Para fazer chapéus de cone, é preciso couro. E para ter couro é preciso das duas uma: ou caçar os garbosos bisões, com os quais definitivamente não nos parecemos, ou comprar o couro de quem os caçou. E veja, eu sei atirar, mas não sou bom caçador, espanto os bichos, todos. E sobre o dinheiro, já contei para o amigo, gastei ele todo para que a minha ideia, minha visão, continuasse sendo minha aos olhos da lei.

— Entendo bem por que o senhor não é bom caçador. O amigo fala por demais.

— E então, meu curto e grosso amigo, o que acha da minha proposta? Não é o negócio de uma vida?

— Amigo, o senhor precisa me desculpar ainda mais uma vez. Eu nunca fiz sociedade antes, sempre trabalhei sozinho, mas não é bom que pelo menos os sócios saibam o nome um do outro?

— Ah, claro! Que cabeça a minha! Hahahaha, meu nome é Anthony, mas pode me chamar de Tony, é como todos meus amigos me chamam. Muito prazer!

— Meu nome é Phil, mas as pessoas também me chamam de Lone — disse estendendo a mão a Tony.

Arrastado pelas teias invisíveis do destino, prenunciadas pela visão do sábio Comanche, ou simplesmente ávido para pôr fim à exaustão que lhe causava todo aquele tagarelar, Phil decidiu selar sociedade com Tony no momento em que o sol terminou de se esconder.

Escrito por: Nilson Doria


 

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